A religião pura
e sem mancha
Nunca se viu tanta religião como hoje!
Quanto mais se fala da suposta “desimportância” da religião para o homem
contemporâneo, tanto mais aparecem religiões de todo tipo. Antigas são
recicladas, novas aparecem; tem para todos os gostos, para todas as serventias
e também para todos os bolsos...
Nessa exuberância de religiosidade, há
algo de intrigante e positivo; pelo menos, fica evidente que a busca religiosa
não é coisa do passado, necessidade de pessoas pouco esclarecidas, suspiro dos
desesperados e deserdados dos bens deste mundo, como às vezes se afirma... Essa
persistência da religião e o cultivo de alguma forma de religiosidade
manifestam uma característica própria do homem: ele é um ser que não se basta e
está à procura; é um ser aberto a Deus e capaz de entrar em sintonia com ele.
E as pessoas são levadas a fazer suas
escolhas religiosas, por critérios muito variados; direito de escolha,
liberdade religiosa e respeito à consciência merecem todo o respeito e
consideração. No entanto, é inegável que, nessa variedade imensa de propostas
religiosas, nem tudo está bem, nem tudo pode ser posto no mesmo nível; para
além das suas fragilidades históricas, a religião tem por objetivo fundamental
ajudar o homem a se colocar em sintonia com Deus e, dessa forma, abrir-lhe a
possibilidade de viver uma existência humana mais autêntica e ser feliz.
Na religião, a questão fundamental é a
busca de Deus e a relação com ele; é questionável quando a religião é proposta
apenas como caminho de satisfação de necessidades mais imediatas do homem, sem
vinculação com Deus e sem a preocupação do reconhecimento e de Deus, como Deus;
sem levar à adoração, como expressão desse reconhecimento, e sem responder ao
anseio pela luz da verdade, que tem sua fonte em Deus.
É preocupante, quando na proposta
religiosa não se fala da obediência a Deus, como expressão e resposta sincera
de fé e amor a Deus; mais preocupante ainda, quando a religião é explorada como
fonte de lucro e pretexto para tomar o dinheiro do povo! É uma forma grave de
desrespeito ao nome e ao ser de Deus!
Jesus faz severas críticas à
religiosidade exterior e formal dos fariseus e mestres da lei, preocupados
apenas com ritos e tradições humanas, que davam revestimento à religião; eles
esqueciam, ou pouco se importavam, com os mandamentos da Lei de Deus; nem
ligavam para a retidão de vida, a honestidade e o amor ao próximo (cf Mc
7,1-23).
E Jesus aplica a eles uma queixa amarga
de Deus, feita através do profeta Isaías: “este povo me honra com a boca, mas
seu coração está longe de mim!” (cf Is 29,13). Jesus coloca o acento da prática
religiosa na sincera adesão interior a Deus e sua vontade, expressa nos
mandamentos (cf Mc 7,8-23). Moisés, após explicar os Mandamentos ao povo,
recomenda que sejam observados fielmente, como sinal de compromisso com Deus e
de adesão à sua vontade; e os Mandamentos, indicando o caminho justo e reto,
são fonte de verdadeira sabedoria e caminho para o bem viver.
Nas palavras do apóstolo São Tiago, “a
religião pura e sem mancha diante de Deus e Pai é esta: assistir os órfãos e
viúvas em suas dificuldades e guardar-se livres da corrupção do mundo” (Tg
1,27). Órfãos e viúvas eram as categorias sociais mais vulneráveis e
desassistidas. Não é diferente daquilo que ensina o apóstolo São João: “não se
pode amar a Deus, a quem não se vê, se não se ama ao próximo que se vê” (cf 1Jo
4,19-21). O próprio Jesus ensina que amor a Deus e amor ao próximo se completam
e fazem parte de um único amor verdadeiro.
A multiplicidade de propostas religiosas
requer uma atenção crítica, para distinguir as propostas verdadeiras das
falsas. Com certa frequência, pretende-se apontar por onde deveria a Igreja
Católica andar, para superar a crise e encontrar a fórmula do
sucesso...Tentações perigosas poderiam levar a trocar a verdade pela vantagem,
a retidão moral pelo formalismo exterior, a obediência a Deus pela manipulação
mágica do poder de Deus; a satisfação de necessidades imediatas, em vez da
humilde adoração de Deus... Ninguém se deixe tentar: não é por aí que devemos
seguir.
05 de Setembro de 2012.
Cardeal Odilo Pedro Scherer
Arcebispo de São Paulo (SP
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