O que falta para
termos um sistema de tipificação de carcaças no Brasil?
Por: Miguel da Rocha Cavalcanti
O que falta para termos um sistema de
tipificação de carcaças no Brasil? Essa é uma grande pergunta que me incomoda
há tempos. A pecuária está muito mais moderna, eficiente e produtiva. No
entanto, um dos principais gargalos para o avanço do nosso setor está na
comercialização de gado para abate. A forma como o gado é comercializado indica
de forma muito forte para o pecuarista o que ele deve produzir, o que o mercado
quer comprar.
Teoricamente faz todo sentido ter um
sistema de tipificação no Brasil. E porque não temos? A tecnologia já existe.
Já temos máquinas, pessoas treinadas, softwares. Enfim, todas as ferramentas
estão disponíveis, inclusive as mais novas tecnologias do mundo já estão por
aqui. Falta querer fazer. Falta fazer sentido. Sentido para o mercado, para as
empresas.
O primeiro grande problema, que eu
desconhecia como entrave a tipificação, é a enorme capacidade de abate do
Brasil. Temos hoje mais de 70 milhões de capacidade de abate anual. E abatemos
cerca de 40 milhões por ano. Ou seja, temos muito mais plantas frigoríficas do
que gado. E planta funcionando vazia, com pouco gado, é mortal para um
frigorífico. Em resumo, escala curta acaba com qualquer projeto de qualidade. É
melhor para a operação, para a fábrica, para as finanças matar mais bois, mesmo
que com menor qualidade do que poucos bois com alta qualidade.
E porque a escala curta é um grande
inimigo de um programa de classificação? Pela cultura do pecuarista, a grande
maioria não quer ser descontado. Todos querem prêmio pela qualidade, mas
ninguém aceita desconto, redução de preço quando entrega baixa qualidade. Em
programas de qualidade, ouvimos que muitos pecuaristas se recusam a participar
quando sabem que serão descontados se a qualidade for baixa. Preferem um preço
fixo para o bom, médio e ruim. E a junção de cultura do pecuarista com elevada
capacidade de abate tem dificultado o avanço dos programas de qualidade.
Outro ponto muito importante é que os
frigoríficos já conseguem comprar um percentual pequeno (10-15%) de animais de
qualidade. E com esse pequeno percentual, fazem um “garimpo” interno e atendem
clientes um pouco mais exigentes.
Com tudo isso contra, existe alguma luz
no fim do túnel? Há algo que podemos fazer? Sim, há muito que pode ser feito. E
mais incrível, há muito sendo feito hoje.
Tivemos a satisfação de reunir muitos
projetos brasileiros de alta qualidade num workshop e webseminário sobre
tipificação e comercialização de gado para abate. O que aprendemos?
Primeiro, precisamos estar mais próximos
de quem compra e vende. Precisamos aprender mais. Quem vende boi tem que entrar
na sala de matança, na sala de desossa, entender por onde o boi dele passa até
chegar a dona de casa e ao restaurante. Esse aprendizado ajuda muito. Do outro
lado, a mesma coisa. Quem vende carne precisa entrar na sala de desossa, na
sala de matança. Precisa ir até a fazenda que produz o boi que vai virar carne,
que vai virar churrasco, que vai virar festa.
Além disso, a tecnologia, as máquinas
não vão resolver tudo. Temos divergências em relação ao peso da balança, que é
algo mecânico, métrico. Outro ponto muito importante é que o repasse das
informações da indústria para o produtor. Quanto mais o produtor souber como o
boi dele está sendo bem ou mal utilizado dentro do frigorífico, melhor.
O receio de algumas indústrias é
repassar essas informações, e ter dificuldade em comprar aqueles 10-15% com
qualidade, pagando preço médio. O problema é que isso já está acontecendo.
Como pecuaristas, queremos comer carne
de bois capões, com bom acabamento e boa coloração. Mas queremos vender bois
inteiros, pois ganham mais peso e custam menos por arroba produzida. Com isso,
temos uma tendência em duas direções.
A carne de qualidade melhora a cada dia.
Enquanto que a carne comum, bica corrida, vem piorando. Seja por bois inteiros
e mal acabados. Ou por problemas como o caroço de algodão mal utilizado.
Aproximar mais a indústria e pecuarista
é fundamental para caminharmos de forma a atender o consumidor final com
excelência. Isso só vai funcionar se houver confiança e ganhos mútuos. Enquanto
isso, produtos substitutos e os inimigos da pecuária nadam de braçada,
aproveitando nossos escorregões e também o crescimento do mercado consumidor,
aqui no Brasil e no mundo afora. O mundo, o Brasil, está consumindo mais. De
tudo, inclusive carne bovina. Esse maior mercado não é só volume, mas uma
enorme demanda por qualidade.
Há exemplos mundo afora que provam que
juntar 1-um sistema de tipificação, que separa o melhor do pior, com 2-maneiras
de enviar feedback ao produtor que aquela boiada dele estava entre os melhores
(ou entre os piores) a produção muda. A qualidade aumenta. Quando há mercado (e
há muito), separar o bom do ruim, pagando diferente, e informando o produtor em
que padrão ele se encaixa, tem mudado a forma de se produzir, atendendo muito
melhor o consumidor.
E quem vai liderar esse processo? Minha
aposta é simples, mas ambiciosa.
Eu acredito que quem poderia liderar
esse processo que será fundamental para revolucionar a pecuária de corte são as
associações de raça, em especial Nelore, Angus e Hereford.
Essas três raças já tem certificadores
trabalhando nos frigoríficos. Pessoas treinadas, capacitadas, fazendo dia após
dia um trabalho fundamental. Ou seja, a estrutura já está em grande parte
montada. Mas temos três castelos sendo construídos, mas incompletos. Poderíamos
construir um só, muito mais forte, robusto e eficiente.
Imagine que “estrago” não seria possível
fazer com uma união dos serviços, dos profissionais, das equipes, do
conhecimento dessas três associações. Reorganizando os tipificadores, pois não
é preciso ter um de cada raça numa mesma planta. Criando um sistema que
simplesmente reunisse essas informações coletadas e desse acesso a quem tem
direito, e impedisse seu uso indevido a quem não deve acessá-las.
Mais de 90% do esforço já foi feito. Os
profissionais já foram contratados, já estão trabalhados. É preciso apenas
agrupar e coordenar. Mas essa é uma proposta ambiciosa, pois juntar quem anda
separado muitas vezes não é fácil. É um grande desafio, que muito iria contribuir
para a pecuária brasileira.
Além disso, com os recentes atritos
entre produtores e frigoríficos, em especial o movimento contra o monopólio,
criado por algumas entidades preocupadas com o futuro do pecuarista, abriu uma
janela de oportunidade para se melhorar o relacionamento produtor-frigorífico e
de um problema está sendo criado uma agenda positiva.
Esse é o momento para ser criar a
tipificação no Brasil e minha sugestão, um pouco ousada, é usar as equipes de
certificadores das associações de raça que já fazem um trabalho desse tipo.
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