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sexta-feira, 27 de fevereiro de 2009

ONDE QUER QUE ESTEJAM

Onde quer que estejam

* Marilia Muricy

A recente inspeção realizada pelo Conselho Nacional de Justiça nos estabelecimentos penais brasileiros não deixou dúvida sobre o que temos afirmado desde que assumimos a Secretaria da Justiça, Cidadania e Direitos Humanos. Boa parte da superpopulação carcerária na Bahia e, de modo geral, no Brasil, é artificial. Isto é, não guarda relação direta com o aumento do índice de criminalidade e/ou com a eficiência maior dos órgãos de repressão. A complexidade dessa chaga social que os discursos corporativos teimam em simplificar somente se entrega à compreensão se, seguindo a lúcida lição de Celso Furtado, formos capazes de refletir sobre o futuro, abandonando preconceitos sobre o presente.
O primeiro indicador a ser levado em conta é a dificuldade de definir, a partir das cadeias, o índice real da criminalidade. É que a chamada “cifra negra”, tormento dos criminalistas dos anos 70 e hoje alvo preferencial da criminologia crítica, esconde o “colarinho branco” e só permite ver, ocupando as carceragens superpovoadas, negros e pobres que não tem condições de pagar o advogado capaz de movimentar a máquina judiciária para a análise de seu caso.
Limitemo-nos, portanto, como fez o Conselho Nacional de Justiça, à população das detenções públicas, começando a análise pelo esclarecimento de alguns pontos que costumam ser omitidos pelo tom emocional que cerca a análise das condições das delegacias, indiscutivelmente atentatórias dos mais fundamentais direitos da pessoa humana.
É certo que os delegados de polícia não possuem, entre as suas funções, a de custodiar presos. Outras, sim, lhe são próprias, como a de comandar as investigações, garantindo-lhes o êxito sem sacrifício de vidas, sem desvios e arbítrios de qualquer natureza, tal como estabelece o artigo 3º da recém sancionada Lei Orgânica da Polícia Civil do Estado da Bahia (Lei 11.370 de 04 de fevereiro de 2009). Ocorre que o Código de Processo Penal, em seu artigo 304 e parágrafos, determina que o delegado, tão logo tome conhecimento de uma prisão em flagrante exerça o controle de sua legalidade, comunicando-a, através de nota de culpa, ao preso, que deverá assinar recibo. De tais providências podem resultar: a) – liberação imediata do preso por defeito formal da prisão; b) – relaxamento da prisão por ocorrência de algum de seus pressupostos materiais; c) – manutenção da prisão, hipótese em que o prazo de permanência na Delegacia, no prazo de investigação, não poderá ultrapassar 10 dias, se o indiciado tiver sido preso em flagrante, ou 30 dias quando estiver solto mediante fiança ou sem ela.
Todas essas providências aptas a reduzir o número de detidos são, segundo o Conselho Nacional de Justiça, sistematicamente ignoradas pelas autoridades policiais que vão deixando crescer o número de presos, a absoluta maioria deles completamente desamparada do ponto de vista da assistência jurídica já que, pobres, não tem condições para remunerar advogados, tal como fazem os grandes delinqüentes, para os quais a prisão provisória não passa de um “flash” nos noticiários. Enquanto isso, os números de presos provisórios crescem assustadoramente chegando, na Bahia, a 73% da população total de internos, aí incluídos os que se encontram nos estabelecimentos da Secretaria da
Justiça, Cidadania e Direitos Humanos aptos a receber presos provisórios.
Aproximadamente 8.000 deles encontram-se em delegacias, sendo necessário um investimento de R$ 355.000.000,00 para a construção de 15 presídios, criando-se número de vagas suficiente para removê-los para o sistema da Secretaria da Justiça, Cidadania e Direitos Humanos cujo excedente populacional já chega a 1.890 internos.
Será então a construção de novos presídios a solução desejada? Qualquer pessoa de bom
senso sabe que a resposta é negativa e pensa outras opções, como as que estamos adotando, a exemplo do sistema de penas alternativas para diminuir o fluxo dos presídios e a ampliação, através dos Núcleos de Direitos Humanos instalados nas áreas periféricas, dos instrumentos disponíveis para exercício da cidadania e prevenção ao crime.
Caracterizada a ampla contribuição dos nossos delegados para as dores que os afligem, favorecidas por tantos anos de silêncio (o sistema autoritário tem as suas estratégias), o que dizer da responsabilidade do Ministério Público neste processo? Por força da regra constitucional e de sua lei orgânica, os promotores públicos estão legitimados para pedir
interdição de cadeias, em nome do princípio da dignidade humana, função que têm exercido com galhardia e grande entusiasmo. Mas também está legitimada para outras formas mais discretas, cotidianas e eficientes de defesa dos direitos, como a impetração de habeas corpus diante das tantas prisões ilegais.
Quanto ao Poder Judiciário, ressalte-se que não atua, em condições corriqueiras, sem provocação das partes – sendo esta uma imposição constitucional. Mas são competentes
para a realização, tal como fez o Conselho Nacional de Justiça, no plano nacional, de correições, de natureza fiscalizadora, preventiva e, se necessário, repressiva.
Recentemente, vivemos na Bahia uma experiência como esta e temos que honrá-la, já que o que deveria ser corriqueiro demorou anos a fio para acontecer. Embora nos estabelecimentos incluídos no sistema da Secretaria da Justiça, Cidadania e Direitos Humanos não haja sido registrada qualquer irregularidade grave, ficou evidenciada, para
a ilustre magistrada responsável, a superpopulação, quer das delegacias, quer, também, do sistema que administramos (mais de 1890 excedentes). Tal circunstância, todavia, não a impediu de determinar que os delegados, cada vez que constatassem, a seu juízo, e
embora sem números ou critérios precisos, ter se tornado “intolerável” a situação da carceragem, encaminhassem em grupos de no máximo quatro, mas sem teto/limite, presos para os estabelecimentos da Secretaria da Justiça, Cidadania e Direitos Humanos
(UED e Presídio de Salvador), que apresentam juntos um excedente de 192 internos,ressaltando-se que na UED se encontram, de modo preferencial, as grandes lideranças do tráfico e que atuaram como elos de ligação nos dois motins que enfrentamos durante a nossa gestão, ambos, diga-se de passagem, resultantes, não de queixas da população prisional quanto à assistência que lhes é oferecida, mas sim de medidas de política prisional firmadas com o objetivo de reduzir, lá dentro, o poder das grandes lideranças do crime organizado.
Os aspectos técnico-jurídicos da decisão nunca chegaram a ficar suficientemente claros para mim. Mas as suas conseqüências práticas sim. Infelizmente, a atividade correcional
não produz automaticamente o efeito de fazer com que os juizes criminais condutores dos diferentes processos – quando processos há!... - agilizem suas decisões, pouco a pouco atenuando o incômodo social que a mídia, aos gritos, anuncia diariamente.
Mas não consigo deixar de me perguntar de que natureza é esse incomodo. Enquanto alguns atores da mídia continuam refestelando-se no caldo de horrores das imagens colhidas nas delegacias, uma parte dos ouvintes sofre com isso e muda o canal. Outra significativa parte, que assegura os números do Ibope, reage com uma mistura de gozo pela vingança que não puderam praticar pessoalmente ou passa os olhos com indiferença sobre as imagens como se ali estivesse uma humanidade circense, diferente da sua. Mas todos sabem que a resposta para sua legitimamente desejada segurança não está aí e sim na construção de uma sociedade menos desigual e discriminatória.
Os que não têm a certeza absoluta pelo que vêm acontecer na sua própria vizinhança, pressentem que com melhores oportunidades sociais, bem distribuídas para a população,
aquelas imagens não estariam ali. Bom seria se fosse cumprida a portaria 113 de 26 de maio de 2008 do delegado chefe da Polícia Civil que proíbe “expor a imagem de pessoa custodiada em unidade policial sem o seu consentimento por escrito, ou divulgar fatos que possam denegri-la ou expô-la a situação vexatória”. Bem como o Código de Ética dos Jornalistas (artigo 11, inciso II), segundo o qual o jornalista não pode divulgar de informações “de caráter mórbido, sensacionalista ou contrário aos valores humanos, especialmente em cobertura de crimes e acidentes”.
Sabem, senão pelos livros, pela memória repassada pelas gerações que se sucedem, que o Brasil ainda é (embora haja começado a lutar contra isto) um país cruel para negros e pobres. Que durante séculos de colonização, com passagem pela escravidão, escola, saúde e trabalho assalariado eram privilégios de poucos. Sabem que a experiência republicana que a seguiu permaneceu desigual e discriminatória. Conhecem a Bahia e os governos que a este antecederam. No dia, 07 de fevereiro, o governador Jaques Wagner foi inspecionar as obras do presídio de Eunápolis e como sempre, nessas ocasiões, não se mostrou alegre. Disse – e a imprensa anunciou – que preferia estar fazendo uma escola. Como disse o governador, esse é o desejo de toda a sua equipe de governo, inspirada pelo exemplo de um homem bom e sensível. Por enquanto, estamos apagando incêndios, para depois, fertilizada a terra boa, plantar sementes para os frutos que queremos colher. Por isso, onde quer que estejam estes homens sob a custódia do Estado, nas delegacias ou nos estabelecimentos prisionais, merecem que façamos por eles mais do que despejar as nossas queixas corporativas ou lamentar os entraves que temos encontrado para construção dos presídios.
Merecem também a nossa promessa de dias melhores.

* Secretária de Justiça do Estado da Bahia

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