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quinta-feira, 31 de março de 2022

A CASA DA ESPERANÇA NÃO ERA VERDE

 A CASA DA ESPERANÇA NÃO ERA VERDE

O terceiro romance de Margarida Fahel, A CASA DA ESPERANÇA NÃO ERA VERDE (Via Litterarum, 2021), segue trilha aberta por NAS DOBRAS DO TEMPO (Mondrongo, 2015) e ENTRE MARGENS (Via Litterarum, 2018). Três romances, a mesma pegada. Há traços marcantes em comum, destacando-se a presença forte da mulher, neste último, por exemplo, na figura de mãe, filha, avó e bisavó – elo intergeracional. A mulher, com seus dramas e trajetórias de vida, ocupa uma posição de protagonismo, não apenas relevante, mas principal. Em todos os três romances, histórias de vida marcadas pelo sentimento de Humanidade, na perspectiva feminina. Neste último, comove a determinação firme de Julieta: “Ele não teria um filho para chamar de seu. Suas léguas de terra, seus milhares de cacaueiros, seu dinheiro no banco, nada, nada me prenderia ali. Daquela fazenda, daquela casa, apenas lembrança gravada a faca naquela lápide, aos pés das dálias vermelhas” (Página 127).
Um outro aspecto diz respeito à narrativa em si. Também neste romance, a autora faz perguntas ao leitor, muitas, como quem busca cumplicidade. E, por vezes, se dirige de forma direta: “Tudo eram flores e festas e alegria. E ilusão, digo eu, que conto esta história” (Página 112). Ou ainda, “Só nós, eu que lhes conto esta história, e você, leitor atento, sabemos que era ele, sim, o menino entregue àquele orfanato onde fora criado por Madre Alzira, no velho bairro de Nazaré, na então chamada Cidade da Bahia” (Página 79), referindo-se à busca de Laura por Olavo. E a história – em rigor, várias histórias – vai se abrindo, descortinando-se ao longo dos quase 30 capítulos, em que fatos e personagens vão surgindo e urdindo-a. No entanto, para compor o todo e fechá-lo, a autora vai desconstruindo versões, agregando personagens e eventos. “Tudo isso, ela via com clareza: o avesso, a mentira, a sombra...” (Páginas 201-202), fazendo analogia ao Mito da Caverna de Platão, ou quando Dona Joana, mãe de Julieta, para Jacinta: “E narrou o avesso, que era o direito e o verdadeiro daquela história. E o retrato do irmão de Jacinta lhe apareceu inteiro” (Página 203).
Ficção e realidade parecem se confundir neste romance. As paisagens, os hábitos, as expressões linguísticas nos transpõem para as primeiras décadas do Século XX, especialmente nos cenários de Ilhéus e os cacauais, Cidade da Bahia, como Salvador de então era conhecida; Sergipe, lugar de origem de muitos migrantes que desbravaram os vales dos rios na expansão da lavoura de cacau no Sudeste da Bahia; mas também Lisboa e Serra da Estrela com seus vinhedos, em Portugal. Sobretudo esses cenários são o palco principal dos acontecimentos do romance. Não podemos esquecer que, na época, vapores faziam a conexão entre Ilhéus e a Cidade da Bahia e navios entre a Bahia e Portugal.
“Vivemos todos numa tortuosa estrada, atravessada por perdidos atalhos, em incessantes buscas... A uma reação intrigada de Olavo, Camila sorri e decide continuar explorando os fatos tão coincidentes.” (Página 222). Para a autora, porém, não são “coincidências”; prefere o termo “sincronicidade”. Nesse sentido, “Coitados dos convictos! Nunca verão a verdade, vez que acham que a possuem...”, nos diz a autora no Prólogo. Ou “- Que sei eu dos caminhos do Senhor?” (Página 31), ou ainda: “- A vida tem seus próprios rumos, filho. Caminhos se cruzam quando devem ser cruzados. Diz o pai Álvaro para Olavo acerca do aparecimento e desaparecimento inesperado de Laura” (Página 59). A teia ou o bordado da tessitura da vida flui inexoravelmente, nessa “tortuosa estrada”.
Nessa conexão entre ficção e realidade, o sonho cumpre um papel relevante, não apenas o sonho lúcido, acordado, mas o sonho que antecipa, que inspira, que aponta direcionamentos. “E, então, refletia que agora sonhos e realidade vestiam-se dos mesmos tons. Estava tudo embaçado, como vidro fosco, do qual não se enxerga o outro lado” (Página 67), como percebe Olavo, na busca de respostas sobre seu passado, após conversa com jardineiro que lhe pergunta se sabe realmente quem é.
“À noite, recolhido no quarto, misturavam-se realidades, sonhos de dormir e sonhos acordados” (Página 99), Olavo pensando na moça de quem se perdeu, Laura, no desembarque do navio.
Sobre o processo de criação literária, a autora nos revela: “Assim se fazem os personagens: vão aparecendo, meio escondidos ou disfarçados, meio misteriosos, o pobre escritor apenas os entrevê ou os vislumbra, e eles vão saindo de detrás de uma porta, de uma varanda esquecida no tempo, de dentro do verde de um canavial, saindo por um bela porta envidraçada e – como explicar? – até de dentro de uma bolsa. E este, o da bolsa, dá uma cambalhota no tempo, salta rápido dali e “de repente, não mais que de repente”, começa a correr, a falar, a viver e a crescer nas páginas de um livro. E chora. E ri. E sofre. E sonha. E pensa. E faz perguntas. Quantas!
E procura mãe que se perdeu” (Prólogo).
O presente romance tem como pano de fundo a questão da orfandade. Seguramente, a criança em situação de orfandade, seja por rejeição por parte do pai, como nos casos de Olavo, de Camila, de Laura e de Marcos, deste romance, por exemplo, ou em todos os outros que figuram ao longo da narrativa, por múltiplas razões, comove e emociona. É uma questão muito sensível, delicada, sofrida. Há muito sofrimento nessas situações de abandono, geralmente longas, configurando uma angústia crônica. “A dor me ensinara o viver da paciência.” (Página 127). Muita paciência e resignação. Muito sofrimento, muita dor, mas também esperança, afeição, amor e, também, sentimento de culpa e busca de perdão, como se outra escolha fosse possível. Comove o amor da Madre Alzira, tia-avó de Olavo, a “freirinha”, como a retrata carinhosamente a autora, numa homenagem a essas religiosas e sua dedicação às crianças órfãs.
A propósito, o sociólogo Zygmunt Bauman nos diz que “a qualidade de uma sociedade deve ser testada pelo critério da justiça e “fair play” que regulamenta a coletividade humana. (...) assim como o poder de carga de uma ponte se mede não pela força média de seus pilares, mas pela força de seu pilar mais fraco, a qualidade de uma sociedade também não se mede pelo PIB (Produto Interno Bruto), pela renda média de sua população, mas pela qualidade de vida de seus membros mais fracos” (Página 7, Caderno Mais, Folha de São Paulo, 19 de outubro de 2003, entrevista concedida a Maria Lúcia Garcia Pallares-Burke). Numa sociedade, crianças abandonadas são, seguramente, os membros mais fracos. Ainda que a velhice desassistida, os refugiados e migrantes mereçam atenção, uma criança abandonada, inocente e indefesa testemunha de forma eloquente contra o grau civilizacional de uma sociedade.
Neste romance, há muitos relatos de crianças abandonadas à orfandade, assim como na vida. Pais morrem, por doenças e/ou acidentes e/ou ações violentas, e crianças ficam à deriva da sorte. Algumas acabam adotadas e acolhidas, e a vida reencontra o prumo; outras não têm a mesma acolhida e são castigadas e se perdem. Múltiplas razões e variadas situações. Contudo, há um abandono em que pais estão vivos e rejeitam suas crianças ou por preconceitos de classe, por problemas de equilíbrio mental e/ou por perversidade mesmo. No caso dos principais casos de abandono deste romance, há um traço em comum e que coloca uma outra questão: Olavo, principal protagonista, é rejeitado pelo pai. Marcos é filho de Clarice e de maestro francês, que a enganara após engravidá-la. Camila, Psicóloga, intérprete dos sonhos, discípula de Dr. Jung, filha de poeta e músico de família ilustre. Nesses três casos, temos a rejeição e hostilidade do pai. Nesse sentido, este romance, nestes tempos de aumento do feminicídio e da barbárie civilizatória, pode ser lido também nesta perspectiva. O poder conjugado com maldade produz desgraças e tragédias. O heroísmo das mulheres é, sem dúvidas, resposta às loucuras perpetradas por essa triste e sombria figura.
Para encerrar, parece impossível ler Margarida Fahel sem confiar mais na bondade humana. Essa leitura acarinha, eleva, enobrece... E encanta, como na descrição da linguagem das flores: “Minha mãe (Julieta) dizia que as margaridas simbolizavam a simplicidade; os cravos, a traição; do girassol, a alegria, e das rosas, conforme a cor, o afeto, a amizade, a paixão. E as dálias? Eu lhe perguntava. A sua resposta nunca esqueci: - Eram a tristeza contida” (Página 211). “Sua mãe amava dálias vermelhas, aveludadas”, diz Madre Alzira (Página 73). E a felicidade da mãe, por não conseguir juntar os filhos, sempre fora contida, limitada, carente de um perdão mais imaginário do que real na perspectiva do filho. Impossível ler sem se emocionar e sensibilizar com a condição das crianças vítimas de abandono desse romance, como Olavo, Laura, Camila, Marcos e outras narradas, cada uma com seu enredo. Impossível não se emocionar e sensibilizar com essas mulheres do romance, sobretudo elas, que com sua resignação e heroísmo tornaram possível a esperança, e mesmo não sendo verde a cor da casa que as abrigava, tornaram possível a confiança no amor e na felicidade.

Agenor Gasparetto
Sociólogo e Editor
Itabuna, 26 de fevereiro de 2022
Via Litterarum Editora/Rua Frederico Maron, 299, Centro, Ibicaraí, BA - Brasil.


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