Censura na
Polícia Federal
Qual o perigo que traz uma camiseta? Que
ameaça representa uma ideia? E se a ideia vier estampada na camiseta? E se essa
ideia, esta...mpada na camiseta, contém o risco de expor os vícios de uma
instituição, qual dano causa? É possível censurá-la? É correto proibir o uso de
camisetas por servidores civis, ainda que dentro das instituições?
A resposta da Polícia Federal em Minas
Gerais, através de recente ato formal de seu superintendente regional, foi a
proibição categórica do uso de camisetas que tragam mensagens ideológicas ou
alusão ao movimento paredista, com consequente ameaça de instauração de
processo administrativo disciplinar e punição para os que a contrariarem.
Antes da proibição, policiais federais
mineiros, que já têm seu direito de greve cerceado pelo corte de ponto e
impedimento de compensação das horas paradas, utilizavam pelos corredores das
delegacias, como opção criativa à retaliação à greve, camisetas com a mensagem
do movimento pela reestruturação da PF. O que estampavam as camisetas
censuradas? Uma delas, uma hashtag já famosa: #CRISEnaPF. A outra, literalmente, expressava um pedido de socorro para
instituição em crise: “SOS Polícia Federal”. Crise evidente, socorro mais do
que nunca necessário. Mas, com uma canetada, foram censuradas, em todas as
unidades de Minas as “perniciosas” camisetas.
O episódio faz lembrar a advertência do
jurista italiano Norberto Bobbioo. O futuro da democracia. São Paulo: Editora
Paz e Terra, 2009, p. 70], para quem as instituições ainda não foram nem sequer
tocadas pela democratização necessária. Algumas delas possuem mesmo vícios de
origem em suas formações, numa concentração de poder movimentada mais pelo
lobby e interesses corporativistas, do que pela discussão razoável de seus fins
e meios. Talvez, por isso, tenham horror ao dissenso e à transparência. Talvez
por isso desejem ofuscar qualquer lampejo de crítica.
A ameaça da censura
É assim com a segurança pública. Ao
longo da história de formação dos órgãos policiais, sabe-se Deus quais foram os
vetores que nortearam a consolidação de alguns institutos, a convalidação de
algumas castas de servidores e a distribuição de atribuições e autoridades.
Francis Albert Cotta, em seu livro
Matrizes do Sistema Policial Brasileiro [Belo Horizonte: Crisálida, 2012],
tocou a ferida das polícias tupiniquins, descortinando, desde sua alvorada, a
concepção de manutenção do poder político, de segregação social e de opressão
de camadas subalternas. Neste ponto, é interessante notar que nossas polícias,
constantemente ligadas a episódios de repressão e abusos na lida com a
sociedade, não deixam de voltar tal braço de truculência para o trato com seu
próprio efetivo, numa alimentação circular da intolerância. São fartos os casos
de assédio moral de policiais, abusos na formação de recrutas, represálias a
posturas inovadoras, a confirmarem tal assertiva. A arbitrariedade interna dos
corpos policiais transborda e influencia a conduta dos agentes no exercício de
seu mister.
A partir desse cenário conhecido, temos
que, a partir de 1988, o pacto pelo caminho democrático exige, por coerência, a
revisitação das velhas organizações. É preciso abri-las à participação cidadã,
para a discussão de vícios e defeitos estruturais, sob pena de não fazermos jus
ao status democrático. É chegada a hora de modernizar e libertar as instituições,
sobretudo as conservadoras e loteadas forças de polícia.
Na contramão desta exigência, sobre a
camiseta que traz mensagens de crise e de anseios por mudanças, assim como
sobre este texto, paira a ameaça da censura – ou da perseguição, com o uso
indevido da administração, em claro desvio de finalidade, na desesperada busca
de silenciar quem não consente ou sugere outro rumo.
A discussão dos equívocos
Não se pode olvidar que a camiseta que
estampa uma ideia abraça, antes, um cidadão. A liberdade e pluralidade de
ideias são resguardadas expressamente pela Constituição Federal e os indivíduos
que as fomentam, na verdade, valorizam os princípios republicanos. São agentes
constitucionais os policiais que discutem e questionam a falida polícia
brasileira.
Negar, sob as sombras da caserna
institucional, o direito de expressão, de dizer o que se pensa, de estampar
aquilo em que se acredita, é simular que não se sabe que nossa Carta Magna
exige dos órgãos estatais e de seus dirigentes a postura de primeiros defensores
dos direitos e garantias fundamentais. A postura despótica incentivada ou
consentida pelo Poder Executivo Federal, a quem está subordinada a PF, traz,
também, um paradoxo evidente, já que muitos ocupantes do primeiro escalão do
atual governo ostentam em seus currículos o combate à opressão dos anos de
chumbo.
O chefe da PF em Minas Gerais não é o
único, nem o primeiro, a tentar usar recursos institucionais como um “cala
boca”. Lembre-se, neste sentido, a recente perseguição perpetrada pelo diretor
da Academia Nacional de Polícia [disponível aqui] contra os professores daquela
escola, que, silenciosamente, protestaram contra a persistência da crise que
assola a Polícia Federal do Brasil.
Em nossos dias, é rotineira a prática da
leitura restritiva de liberdades públicas pelos gestores estatais e a aposta
nas dificuldades enfrentadas pelos constrangidos na busca pelo auxílio
judicial. Até uma libertadora liminar, limita-se a discussão dos equívocos e a
perniciosa irradiação da ideia.
No caso aqui denunciado, a proibição da
camiseta é a proibição da exposição da ideia do cidadão, servidor público e
policial federal. Baixa-se o mandamento: é proibido discutir o atual modelo e
as estruturas das polícias, por mais arcaicos que se apresentem. O fracasso de
anos de ineficiência, manifesto nos explosivos índices de violência,
criminalidade e insegurança pública, não pode ser denunciado em camisetas, nas
costas ou no próprio peito.
***
Johnny Wilson Batista Guimarães é
escrivão de Polícia Federal e mestrando de Direito
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