0,50 centavos de Grécia Antiga: Crono e o coronavírus
Por
Jacquelyne Queiroz
Por causa da pandemia ocasionada
pelo covid-19, já estou há 28 dias em casa, tentando fugir do vírus. Nesse
período passei a brigar com o relógio. Como professora de História faço o
exercício constante de perceber a relação entre os acontecimentos e o tempo.
Mesmo assim, hoje, estou em crise cronologicamente.
Lembrei-me que em 2015 vi em um
shopping em Salvador uma loja de relógios chamada Cronus e fiquei muito
encantada. Hoje em meio a pandemia, penso diferente, acredito que não conseguiria
adentrar num local e presenciar sem agonia o tempo passar em tantos relógios.
Essa loja e a situação que vivemos
hoje me fizeram lembrar das narrativas gregas antigas que envolvem o titã
Crono. Urano (Céu) todas as noites se unia a Gaia (Terra), desses encontros
nasceram muitos filhos que Urano detestava e por isso a todos escondia no
interior do solo. Gaia irritada com tal situação entregou na mão de seu filho
Crono uma foice. Este no momento certo “[...] do pai pênis ceifou [...]” (Hesíodo, Teogonia, v. 180-181).
Na cosmogonia grega a função do
rei é criar e procriar. Ao ser castrado por Crono (Tempo), restou ao soberano
Urano (Céu) multilado e impotente cair na ociosidade (BRANDÃO, 1991, p. 200).
Enquando isso, Crono assume o poder, se une a Réia e a todos os filhos ele
passa a engolir, temendo que algum deles se tornasse rei em seu lugar (Hesíodo,
Teogonia, v. 459-467).
Depois de Réia muito bem tramar,
Zeus, o seu filho mais novo, consegue fazer Crono vomitar seus irmãos: Hétia,
Deméter, Hera, Hades e Posídon. E depois de guerrear por dez anos, prende seu
pai Crono no Tártaro, nas pronfudezas da terra, em um local cercado por muro de
bronze e vigiados pelos hecatônquiros gigantes Coto (“o que bate”), Briareu (“o
forte”) e Gias (“o lembrado”), cada um dos quais tinha cinquenta cabeças e cem
braços (KERÉNYI, 2015, p. 26).
Ao meu ver, Crono (Tempo) esteve preso pelos desígnios de
Zeus até alguns meses atrás. Acredito que Coto, Briareu e Gias foram
contaminados pelo coronavírus também. Imagino a dor terrível que sentiram em
suas cabeças e como foi incômodo ter cinquenta narizes corizando ao mesmo
tempo. Penso nos cem braços doloridos, nos corpos gigantes ardendo em febre e
sem encontrar um dipirona nas profundezas do Tártaro para tomar. Um não... já
que os três hecatônquiros juntos possuíam 150 bocas. Ficou fácil então para o
titã do Tempo escapar de sua prisão.
Crono agora está solto. Um deus
grego se manifesta pela sua presença (TORRANO, 2014, p. 49-50). Para muitos
contaminados, infelizmente, Crono se fez ausência, pois faleceram tão rápido
que não tiveram tempo para se curarem nem se despedirem de suas famílias. Os
profissionais de saúde estão inclusive correndo atrás de Crono para ajudarem os
pacientes doentes.
Já aqui em casa parece que Crono
está fazendo morada. Percebi que eu me comportava como Urano antes da pandemia,
queria produzir, escrever e publicar sem parar para alimentar o Lattes, pois
tinha o receio do currículo me morder mais tarde de fome. E bem similar ao
mito, veio Crono e me castrou.
Passei
a me comportar como Urano mutilado, sem fecundidade. Percebo que também perdi a
fertilidade acadêmica. Não consigo produzir como esperava, pois me sinto
assombrada pelo espectro da morte e o temor de minha cidade se tornar o reino
de Hades. E assim como o deus do Céu me recolho na ociosidade. Em outros
momentos me sinto como Zeus, lutando contra Crono e prendendo-o sob vigilância
ferrenha. Seguindo os seus passos, tomo os domínios de Crono e passo a comandar
o mundo... pelo menos tenho a ilusão de comandar o meu durante um período.
Ora
me comportando como Urano castrado, ora como Zeus, vou seguindo na quarentena
tentado lidar com o Tempo que continua livre de seu cativeiro. Não tenho ideia de como vou me relacionar com
Crono após a pandemia. Mas uma coisa é certa: eu não passo perto daquela loja
de relógios Cronus tão cedo.
REFERÊNCIAS:
BRANDÃO,
Junito de Souza. Mitologia Grega. v. I. Petrópolis: Vozes, 1991.
HESÍODO.
Teogonia. Versão bilíngue grego/português. Tradução de Jaa Torrano. São Paulo:
Iluminuras, 2014
HERÉNYI,
Karl. A mitologia dos gregos: A história dos deuses e dos homens. v. I.
Petrópolis: Vozes, 2015.
TORRANO,
Jaa. O Mundo como função de Musas. In: HESÍODO. Teogonia. Versão bilíngue
grego/português. Tradução de Jaa Torrano. São Paulo: Iluminuras, 2014. p.
13-100.
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